Sobrevive de bicos, sustenta mulher e filhos e vai à Feira dos Pássaros aos domingos. Certo dia, tomaram-lhe o celular e uma nesga de pele das costelas. Correu até faltar o fôlego, alcançou com um murro o larápio. Mas a faca, quando corta fundo, fere bem mais que a mão fechada. No IJF, fez pontos, curativos e uma promessa: voltaria ao lugar do assalto, descobriria o endereço do desgraçado e daria cabo de uma vida de merda. Comprou uma arma, seguiu o infeliz e, no beco de sua sorte, descarregou três balas na cabeça de um bandido sem nome.
Ronaldo não tem uma perna, não tem um diploma, não tem casa própria.
Não vai roubar a casa, não vai cobrar preço desmedido pelo trabalho, não vai encher a cara e deixar as meninas sem pai e a mulher sem marido. Aposta em jogos de azar por cinco mil reais, quem sabe. Já foi lavrador, garçom, comerciante. Foi professor, mas não gostava quando trocava letra de palavra e a molecada reprimia. Desceu a serra natal e veio meter-se na cidade. Em um desses túneis, de madrugada, quatro homens armados lhe pediram a moto. Um tiro levou-lhe a perna. Nove dias interno no hospital e ele fugiu aliviado do leito da emergência: o vizinho, também amputado, criava bichos na ferida ainda aberta.
Ronaldo faz soldas em portões e é bom no serviço.
Sabe de cor o nome dos grandes proprietários de terra do estado. Conta nos dedos os hectares cercados, as frutas caídas na terra, sem boca para alimentar. Lembra do sol fustigante de um dia de trabalho e dos cinco reais de recompensa. E sorri. Fala de como, aos 17 anos, construiu a casa da primeira família com as próprias mãos. Depois a mulher quis separar e pediu a propriedade, estava no terreno do pai dela. Ele acenou com a cabeça e, à noite, lascou fogo em tudo. “Toma tua casa, mulher. Eu vou embora pra Fortaleza.”
Ronaldo é mais um salário mínimo, lotado na cidade informal. Sem perna, sem diploma, sem renda fixa, sem casa própria e sem papas na língua. Conhecia a branquinha aqui não tinha nem 5 minutos, já desfolhou a vida inteira, respondendo a cada pergunta, sorrindo. Falava baixo quando o assunto era mais sério, depois subia o tom grave em uma gargalhada. Não agia nem falava como um louco. Já matou um homem e me disse sem escrúpulos.
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